Uma forma de entender traços do passado é analisar o espaço doméstico. O texto abaixo apresenta um resumo do estudo de Leila Algranti sobre o tema, feito através da leitura de inventários, plantas baixas, relatos de viajantes, escritos de cronistas, ilustrações e outras fontes. Trata-se de um estudo elucidativo sobre as implicações materiais nos padrões de sociabilidade e privacidade na América portuguesa dos primeiros séculos de colonização.
MORADA
A morada, espaço que oferece abrigo e onde se desenrolam as diversas atividades do cotidiano, é um vestígio valioso para se entreolhar os aspectos familiares, sociais, afetivos, de trabalho e de relação entre os gêneros. É um elemento que oferece pistas e evidências importantes para o historiador. “É [...]no domicílio que encontramos os colonos interagindo com o meio natural, inovando nas formas de subsistência e vivenciando seus laços afetivos”
A moradia colonial aparece em relatos de cronistas e viajantes, tanto escritos como iconográficos, e em inventários e testamentos. A forma de construção, os materiais empregados, a disposição e o tamanho das moradas eram heterogêneos, variando regionalmente e também em função do locus social do habitante.
Nos primeiros séculos, as moradias eram simples, geralmente com apenas um andar, feitas com materiais locais (barro, madeira, pedras, fibras vegetais, etc). Eram construções homogêneas. Esse estilo perdurou longos século: John Luccock registrou, ainda no século XIX, a permanência desses tipos de construção. No âmbito urbano, ainda que restassem influências indígenas e se vissem adaptações dos colonos às condições da terra, predominava o estilo português.
ÁREAS CIRCUNDANTES (varandas, quintais, hortas, anexos, etc.)
Em todos os casos, a moradia extrapolava a área construída, arregimentando os arredores em quintais, pomares, hortas e outros anexos, delimitados por muros baixos. Nesse espaço circunscritivo conviviam os animais domésticos, a pequena indústria doméstica, a produção da subsistência. A agricultura agroexportadora, indiferente às demandas da comunidade local, tornava hortas e pomares essenciais para a complementação alimentar dos colonos. Do mesmo modo, a ausência de médicos e farmácias impunha a esses espaços a função de produtores de ervas medicinais. Além disso, a área externa dos domicílios, geralmente a que ficava na parte posterior, abrigava a cozinha e a senzala. Havia ainda os anexos que continham monjolo, moenda, casa de farinha e depósitos de alimentos. Muitos habitantes da casa, especialmente as mulheres, passavam a maior parte de seu tempo neste espaço.
Apesar de cercados, os quintais não estavam a salvo dos olhares dos vizinhos; eram o local de abrigo a viajantes, num período em que a precariedade das estruturas de estalagem tornavam a hospitalidade uma virtude obrigatória. Muitas eram as casas que possuíam um quarto na varanda fronteiriça, sem ligação com o restante do domicílio, com o fito de abrigar mas isolar o estrangeiro. A casa era voltada para dentro; o grande calor obrigava as pessoas a passarem a maior parte do dia nas áreas externas, que concentravam a maior parte das atividades. Os mais ricos chegavam a construir refeitórios nas varandas.
ACOMODAÇÕES PARA OS ESCRAVOS
Nas casas mais simples, não havia local reservado especificamente para abrigar os escravos: eles dormiam em esteiras sobre o chão, geralmente na cozinha. Nos sobrados, eles eram instalados ao rés-do-chão ou em subsolos; em alguns casos, nos sótãos. Nas fazendas em que o número de escravos era grande havia obrigatoriamente uma construção para abrigá-los, compostas de maneiras diversas.
JARDINS
Raros até o século XIX. Espaço dúbio, que poderia ser tanto um refúgio para se obter a privacidade, num contexto de constante observação externa e interna, como também poderiam ser um “cativeiro” para as mulheres, um local de vigilância e supervisão.
GELOSIAS E RÓTULAS
Permitiam o arejamento e poupavam os habitantes dos olhares da rua. Esses elementos foram sempre interpretados como provas do confinamento feminino. Algranti oferece outra interpretação, sugerindo que queriam antes esconder a simplicidade e a rusticidade dos interiores. Seu desaparecimento, precipitado pelas normas de banimento impostas quando da chegada da corte ao Brasil (que as considerava demasiadamente orientais), coincidiu com um momento de maior preocupação com a aparência do interior dos imóveis. Um indício disto é o fato de que as rótulas desapareceram por último nas casas menos nobres.
DIVISÕES INTERNAS
Problemas: não está bem elucidada a função de alguns compartimentos nas casas abastadas, e nas mais pobres os cômodos acumulavam superposição de funções, dada sua exiguidade de número. Nas casas mais simples, havia um ou dois cômodos onde se dormia, cozinhava, e às vezes se desenvolvia algum pequeno ofício. Nas casas mais abastadas, os compartimentos eram enfileirados; na frente, uma sala com janela para a rua. Os demais cômodos podiam ser acessados por um corredor; havia o hábito de se construir alcovas (compartimentos sem janelas), que assim o eram por conta da impossibilidade de abrir janelas, uma vez que estavam contingenciadas pelos imóveis vizinhos. Nos fundos, a cozinha, o alpendre, o quintal. Era um padrão repetitivo.
Nos sobrados havia o cuidado de separar as atividades por andar, de maneira a preservar a privacidade da família. No primeiro piso, geralmente se instalavam as atividades econômicas, comércios, oficinas, escritório. O segundo piso abrigava o espaço familiar reservado, os quartos e salas. As cozinhas ficavam nos fundos.
COZINHAS
Na Europa, as cozinhas eram trazidas para dentro dos domicílios, e o fogo era lugar de reunião da família. No Brasil, mesmo na região sul, mais fria, a cozinha foi desde o início afastada da casa. Para Algranti, isso se deve a um esforço para segregar os escravos do resto da casa, uma vez que a cozinha era um de seus domínios. Com o passar do tempo, a proximidade do fim da escravidão impôs a anexação da cozinha ao corpo principal da casa, em nome da praticidade. A cozinha foi lentamente se interiorizando, primeiro subdividindo-se em duas (a suja – externa e a limpa – interna), e depois sendo definitivamente incorporada à casa. Além disso, novos padrões de sociabilidade transformaram as refeições em momento importante de reunião familiar.
CAPELAS
De início autônomas, situadas num cômodo exclusivo no interior da morada e até mesmo fora dela, a capela foi migrando para o oratório portátil, o que sugere reforço individualismo e apego à privacidade.
ÁGUA
Nas casas em que não havia poços ou cisternas, o abastecimento era feito em rios, fontes e chafarizes públicos. Como os encarregados por essa tarefa eram os escravos, a privacidade da família que morasse em casa sem fonte própria de água era prejudicada, uma vez que os cativos iam buscar água e levavam informações íntimas da casa, que eram circuladas para os outros que encontrassem nas fontes e chafarizes...
No fim do século XVIII e início do XIX surgem no Brasil novos padrões de sociabilidade e de comportamento doméstico. Nessa época o ímpeto móvel se reduz, as cidades crescem. Ascende a preocupação com a intimidade, com a privacidade, e isso se traduz nos objetos do cotidiano e nas formas e usos das construções.
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Melo e (Org.) História da Vida Privada no Brasil - vol 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 83-154
Imagem: Walter, Heidimar e Maria José Guimarães, década de 1930 - Acervo Fotográfico do Museu Casa Histórica de Alcântara.
Pesquisa e texto: Daniel Rincon Caires
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