quarta-feira, 16 de março de 2011

A presença feminina no Museu Casa Histórica de Alcântara

Procória da Silva Guimarães por volta de 1905. 
Retrato feito pelo artista alcantarense Nestablo Ramos.
O sobrado que sedia o Museu Casa Histórica de Alcântara abrigou, ao longo dos seus quase duzentos anos de existência, personalidades femininas cujas trajetórias individuais desafiaram os comportamentos e conceitos de suas épocas. Não são, no entanto, figuras públicas nem líderes de qualquer tipo de movimento de emancipação feminina. A resistência que impuseram às tentativas de restringir o espaço de ação feminina se deu no cotidiano, no espaço privado e anônimo, em esforços que certamente foram similares a outros tantos efetuados nas mesmas condições, e que por isso servem como indicadores de um padrão de luta.    
Mariana Francisca de Viveiros foi uma delas. Ela tem sido identificada, quase sempre, por suas ligações com homens importantes da época, como seu pai, o Comendador José Maria Correia de Souza, português rico que se tornara chefe político local, responsável por determinar a implantação de inúmeras melhorias urbanas na cidade, em tempos do Segundo Reinado; ou de Francisco Mariano de Viveiros Sobrinho, seu primo e esposo, influente na política provincial e partícipe das decisões da Corte, que foi agraciado com o título de Barão de São Bento em 1853, fazendo de Mariana baronesa.  Ou ainda por seu papel de progenitora de José Francisco de Viveiros, líder politico que conseguiu manter a presença política da família Viveiros mesmo após a Proclamação da República.
Vista assim, como figura assessória de personagens masculinos a quem se confere importância histórica, ela parece perder suas caracterísitcas pessoais. Quem a observar dessa forma deixará de perceber uma outra faceta de sua personalidade, que é a de chefe de família e administradora de vastos bens, posição em que foi bruscamente alçada em 1860, quando da morte prematura do Barão, aos 41 anos de idade. Colocada à frente de um grande cabedal de propriedades rurais, escravos e outros empreendimentos, e como cabeça de uma extensa família de políticos e figuras nobres, ela desempenhou, nas três décadas seguintes, um papel que estava tradicionalmente reservado aos homens. Além de atuar nessas funções, ela ainda se dedicava às atividades religiosas da cidade, aparecendo como uma importante financiadora das suas festas tradicionais. 
Foi a responsável, afinal, pela negociação que transferiu a propriedade do sobrado número 1 da Praça da Matriz para as mãos da família Guimarães. Em transação fixada no Livro de Registro de Imóveis do Cartório da cidade de Alcântara, realizada em 28 de setembro de 1889,  a Baronesa de São Bento vendeu o casarão para a firma “Guimarães et Irmãn”. Entra em cena, nesse momento, nossa segunda personalidade feminina, Procória da Silva Guimarães, a “irmã” que aparece no registro do Cartório. Em sociedade com Antonino Guimarães, ela investiu suas economias na aquisição do sobrado, que se tornaria, daí em diante, um espaço de comércio e desenvolvimento de ofícios. A nova família proprietária era composta por artífices de várias especialidades – ferreiros, sapateiros, alfaiates – que impuseram uma outra dinâmica ao imóvel. Procória, pelo que se sabe, especializou-se na arte de fazer rendas, atividade importante naquela altura.
Reafirmando um posicionamento que pressionava os limites impostos pela tradição social, ela rompeu a parceria com o irmão comerciante em 1893, o que levou à subdivisão do imóvel adquirido pela antiga firma. Procória, que ficou com a metade norte do sobrado, conferiu uma nova orientação ao prédio: ordenando o fechamento parcial de uma das portas do piso térreo, improvisada em janela, decretou a privatização de um espaço que, até então, orientava-se para a o mundo público, da rua. O acervo do Museu Casa Histórica de Alcântara guarda vestígios da vida privada de Procória, como objetos de toucador, frascos de perfumes e leques. Roupas femininas repletas de intrincadas rendas, toalhas de banho e mais um vasto material têxtil indicam a habilidade de seu trabalho manual e os padrões de uma feminilidade que se materializava no vestuário. A presença de um genuflexório, um sacrário e imagens religiosas em seus aposentos revela as formas e preferências da religiosidade privada da virada do século XIX em Alcântara.
Outra personagem feminina de destaque na história do sobrado número 1 da Praça da Matriz foi a ex-escrava Mãe Calu. Nascida em meados do século XIX, ela viveu mais de cem anos na cidade de Alcântara, tendo testemunhado momentos importantes da história nacional, de cujos  desdobramentos resultaram muitas mudanças na sua própria vida. Acompanhou de perto os movimentos que se seguiram à Abolição da Escravatura e à Proclamação da República; naquele 15 de novembro, os ex-escravos destruíram o pelourinho, símbolo da monarquia e da escravidão, levando seus restos para lugares ignorados. Nos anos 1950, já centenária, Mãe Calu indicou a localização dessas peças, o que permitiu a restauração do pelourinho, um dos mais famosos elementos da paisagem da cidade, marco de um período da História do país.
Mãe Calu era carismática e firme, e tornou-se guia e referência para a comunidade formada por ex-escravos na cidade. A tradição oral indica que ela passou a viver no sobrado da família Guimarães já depois da abolição, vinda como acompanhante da noiva de Antonino, Leontina Estela. Na nova família, ela ascendeu ao papel de “governanta”, administrando os serviços necessários ao funcionamento da casa. Era a superiora de um grande grupo de moças que viviam e trabalhavam no sobrado dos Guimarães, as “crias da casa”, a quem comandava com rigor e disciplina. Exímia cozinheira, suas receitas até hoje são lembradas. Detentora de saberes religiosos ancestrais, administrava rezas e benzas, assumindo o papel de curandeira. Suas receitas e rezas foram compiladas e expostas na Mostra “Mãe Negra” em São Luís, que aconteceu os anos 1990.
Mas ela extrapolou o papel de serviçal da família e prosperou, diz-se, a partir da criação de galinhas e bovinos, tornando-se proprietária na cidade. Ao morrer, a mulher que começara sua vida como cativa, na categoria de coisa, havia conquistado o respeito de toda a sociedade local. Ela, no entanto, nunca deixou de se reconhecer como  ex-escrava: ainda se lembram os antigos moradores da cidade que, todo dia 13 de maio, Mãe Calu se vestia com suas melhores roupas, paramentava-se com jóias e se sentava no banco da praça em frente ao sobrado, debaixo da frondosa figueira que ainda lá se encontra, e distribuía doces às crianças. Uma rotina que indica a construção de um culto particular à figura da Princesa Isabel, e que não deixava que se apagasse da memória a triste lição da escravidão.
O Museu Casa Histórica de Alcântara, como se vê, é detentor da memória dessas pessoas singulares, mulheres que sustentaram atuações importantes em seus contextos e que contribuíram, cada uma a sua maneira, para derrubar as barreiras sociais impostas ao gênero feminino.    
Texto e pesquisa: Daniel Rincon Caires

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