quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Compreendendo o passado através dos móveis de guarda

 

Baús são objetos de difícil datação, pois foram executados
sem grandes variações nos modelos desde o século XVII
até o XIX (Tilde Canti)
 
  
Nem sempre é possível elucidar aspectos da vida no passado através de documentos escritos. Mais difícil ainda é encontrar informações específicas a respeito de determinado aspecto particular, como sobre uma casa, por exemplo. Essas afirmações tem como objetivo demonstrar que, em relação ao Museu Casa Histórica de Alcântara, enfrentamos dificuldades para estabelecer conhecimentos históricos absolutamente precisos, como data de construção, origem dos objetos do acervo, etc. Ao que tudo indica, a documentação escrita que poderia dar informações objetivas sobre essas questões se perderam no tempo. No lugar de dados documentais escritos, trabalhamos hoje com uma profusão de informações de cunho oral, preservadas pela tradição local. Uma das grandes fontes desse tipo de informação é Heidimar Guimarães Marques, neto de Antonino da Silva Guimarães e espécie de guardião da memória local. Nos últimos 30 anos, quase todas as publicações que tem Alcântara como objeto contam com a colaboração deste personagem na sua confecção. Além de Seu Heidimar, guias de turismo, donos de estabelecimentos comerciais, professores, moradores, todos carregam em si versões da história de Alcântara. A memória, como se sabe, está sempre sujeita a reconstruções e modificações ao longo do tempo. Não que se advogue aqui uma pretensa superioridade dos documentos escritos, dados a dubiedades, infidelidades, incoerências e erros de registro.



Caixas e baus, móveis de guarda, revelam uma sociedade transitória, de mudanças constantes. Aos poucos ganham pés e perdem as argolas laterais; no século XVIII fixam-se como  objetos de interior, revelando uma estabilidade crescente na casa. A definitiva estabilidade aparece quando surgem as gavetas e desaparecem as fechaduras. (Marlene Suano)
 
Este longo parágrafo inicial se justifica pela necessidade de valorizar outras formas de compreender historicamente nosso objeto principal,  que é o Museu Casa Histórica de Alcântara. Uma vez que não temos elementos documentais escritos para compreender todos os aspectos deste objeto específico, podemos partir para outros caminhos. Um deles é realizar um olhar “arqueológico”, encarando como fontes os materiais presentes na casa, ou seja, ela mesma e os objetos que contém.
Cofres com mais de uma fechadura eram usados em órgãos
públicos e em casas comerciais com vários sócios, pois permitiam
o controle mútuo do acesso ao conteúdo.
Os móveis, segundo Marlene Suano, são o arrimo material para o cotidiano, servem para a guarda, o apoio, o repouso. O móvel ilustra o contexto em que foi produzido e utilizado. Às vezes é visto de maneira reducionista, como mero cenário;  às vezes, é fetichizado por ter pertencido a determinado personagem ilustre, ou ter servido de apoio para algum ato considerado importante para a história. Observados de uma outra forma, eles fornecem subsídios para compreender a sociedade que os produziu. É necessário entender o lugar que ele ocupava na casa, qual sua função utilitária, que materias-primas foram empregadas, que estilo e grau de acabamento foram executados. Essas informações podem indicar a compreensão que as pessoas tinham desse espaço, da sociedade, do meio ambiente e do objeto ele mesmo.
O baú era o móvel mais comum nos primeiros séculos de colonização no Brasil. Os migrantes portugueses os traziam nos navios, carregando neles os poucos pertences que apoiavam a vida cotidiana nas novas terras. Uma de suas características mais importantes é a mobilidade: o baú é um móvel em constante prontidão para o deslocamento, se adaptando bem às necessidades das pessoas, em tempos em que a vida era feita de constantes mudanças. Seu interior, geralmente composto por apenas um compartimento, não permitia o acondicionamento organizado dos objetos, o que pode indicar a simplicidade da vida material dos colonos brasileiros. Os baús guardavam as poucas peças de roupa; guardavam as alfaias e ornamentos úteis para disfarçar a escassez de elementos dos interiores residenciais e ainda serviam para a guarda dos enxovais das moças da casa, que os levavam para o início da vida nova quando se casavam.


Há uma certa  dificuldade em se determinar diferenças entre arca e baú. No glossário da obra de Tilde  Canti, baú tem como característica a tampa convexa, duas fechaduras e duas alças laterais, sendo predominantemente usada para viagens. Já a arca é definida como uma caixa grande, com tampa plana, de madeira ou revestida em couro, em geral com fechadura. Subentende-se que seria um móvel fixo. Os exemplares contidos na Casa Histórica de Alcântara embaralham estas definições, pois em alguns casos as mesmas peças tem características dos dois móveis.

A arca é um móvel que sugere estabilidade, ganhando pés fixos e crescendo em proporção e massa. Ainda apresenta as alças laterais, para auxiliar em deslocamentos internos, indicando a instabilidade no interior dos domicílios, quando os cômodos podiam variar de função. O tampo plano podia servir de mesa, aparador e banco. Nosso exemplar apresenta um escaninho interno, o que demonstra o início de uma diversificação da vida material de seus usuários. A rusticidade em sua execução, prescindindo de elementos decorativos, permite ver uma despreocupação com a aparência, focando-se nos aspectos utilitários da peça.

O gavetão superior deste móvel é falso,
criado para manter a harmonia visual da peça

A arca com gavetas é um móvel híbrido, mantendo características da arca, como o tampo de levantar, mas ganhando um gavetão e perdendo as alças laterais. É um móvel feito para servir pessoas que possuíam complexidade material maior, dada a existência de vários compartimentos, e ainda mostra preocupação com os aspectos estéticos, quando se observa o trabalho de entalhar uma gaveta falsa para manter a harmonia visual da peça.
O próximo passo evolutivo é a meia-cômoda, móvel que foi introduzido no Brasil no século XVIII, de invenção francesa. A profusão de ornamentos indica que, além de servir, a peça devia ser agradável aos olhos. O grande número de gavetas e gavetões indica uma sociedade bastante complexa materialmente, e o fato de ter sido feito para ficar imóvel na casa sugere que já se consolidara uma clara divisão das funções dos cômodos.

Outros móveis de guarda presentes na exposição permanente demonstram as evoluções posteriores da sociedade, que passa a fazer uso de objetos com maior quantidade de funções agregadas, como a cômoda com espelho (que indica também a preocupação com a aparência pessoal) e o guarda-roupas, que substitui os cabideiros no acondicionamento de chapéus e paletós.
 

Chama atenção o número de objetos de guarda no acervo do museu:
são 17, dividos nas categorias cofre (1), caixa cofre (1), mala (8), baú
 (2), arca (1), bau-arca (1), mala forte (1), mala baú (1) e caixa (1).
As peças parecem ser de origens e períodos diversos, de maneira que é
 possível perceber a evolução de suas linhas.

Todos os móveis tem em comum a presença de fechaduras, elementos que conferem privacidade e, principalmente, segurança. A fragilidade das trancas sugere que o objetivo era deter não o ladrão “externo”, que facilmente romperia as travas, mas o furto doméstico, realizado por pessoas que não querem deixar rastros de sua passagem. A preocupação é com as pessoas que circulam normalmente pela casa, o que demonstra a presença de círculos sociais diversos e, às vezes, antagônicos, no ambiente doméstico, característica típica da família patriarcal e escravocrata.

O perito Luis Alfredo Netto Guterres, responsável por realizar o inventário inicial dos objetos presentes no sobrado quando de sua desapropriação pelo Estado, registrou um conjunto de 6 baus e 11 malas datadas do início do século XX, todas de “uso e propriedade” da família Guimarães. A presença de tão expressivo número desse tipo de móvel sugere uma série de conclusões: a existência de uma grande quantidade de bens móveis, dinheiro, joalheria, objetos pequenos e valiosos que precisavam ser guardados e protegidos dos circulantes domésticos, e ainda a preocupação com o transporte rápido e discreto desses bens. Outra consideração que deve ser feita em relação a esses objetos é que podem ter sido reunidos em tão grande número atendendo a um interesse histórico pelas peças. Há hoje na cidade de Alcântara uma empresária que possui em sua residência 5 baus antigos, que coletou pessoalmente, comprados de pessoas que ainda as usavam enquanto móveis, ou seja, são peças que perderam seu “valor de uso” para se tornarem objetos dotados de “valor histórico”. Antonino Guimarães - segundo relato de seu neto Heidimar presente no livro “Memória de Velhos – Vol. 4” - era um homem que procurava preservar os valores e costumes do universo do  baronato, pretendia encarnar a figura do barão, queria ser a continuação de uma tradição: instala-se num sobrado que havia pertencido a um membro da nobreza local, mantém “crias” na casa para realizar os serviços domésticos, evita misturar-se com o populacho. De maneira que se pode imaginar que seu hábito de coletar objetos antigos e requintados obedeça a esse impulso de recuperar e preservar uma época desaparecida.
Bibliografia:
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Melo e. (Org.) História da Vida Privada no Brasil (Vol. I). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 83-154.
CANTI, Tilde. O móvel no Brasil: Origens, evolução e características. Rio de Janeiro: Cândido Guinle de Paula Machado, 1985.
PRIORE, Mary Del. Ritos da Vida Privada. In: SOUZA, Laura de Melo e. (Org.) História da Vida Privada no Brasil – VOL 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SUANO, Marlene. Alfaias, apetrechos, tarecos, trecos: os móveis. in: Como explorar um Museu Histórico. São Paulo: USP/Museu Paulista, 2000.
Depoimento  de Heidimar Guimarães Marques. in: Memória de Velhos. Depoimentos: uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense. São Luis: LITOGRAF, 1997. Volume IV.

Pesquisa, texto e fotos: Daniel Rincon Caires

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