terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sobre o trabalho de produção de móveis no Brasil colonial

Joaquim Cândido Guillobel
"Fiel retrato do interior de uma casa brasileira"; 1814/1816
Caio Boschi, professor da PUC-MG, realizou estudos acerca do Barroco mineiro que trazem luz sobre o trabalho de artífices no Brasil. Isso se deve a sua proposta de analisar o Barroco - que considera a primeira expressão artística brasileira - por um novo viés, qual seja, o de abandonar as tradicionais abordagens estéticas para se concentrar no contexto de produção e nas relações sociais que engendram as obras. Ele busca mapear a estrutura e a dinâmica do trabalho dos artífices, bem como as formas de consumo dos materiais por eles produzidos. Em suma, trilha outro caminho que não o da abordagem puramente artística, concentrada nas peças e obras, deixando de lado ainda a visão de foco sobre alguns personagens famosos para se voltar a um olhar maior, ou, em suas palavras, “contextualizar objetivamente a atuação do conjunto dos homens que se dedicavam às artes e aos ofícios mecânicos na região mineradora da colônia”. Carpinteiros, marceneiros e carapinas, junto com entalhadores, escultores e construtores, aparecem em evidência no estudo de Boschi.
A mineração criou um universo urbano, comercial, cultural e adminstrativo à sua volta, gerador de demanda por profissionais liberais, artífices e outros trabalhadores especializados. A prevalência do trabalho escravo foi proporcionalmente menor: o trabalho livre caminhava com a urbanização. O esgotamento das minas, além disso, provocava um êxodo de mineiros desiludidos para as cidades, compondo um contingente de trabalhadores livres. Estudos demográficos mais recentes demonstram a expressiva presença de trabalhadores livres atuantes nos setores secundário e terciário. Parte dessa população de mecânicos era itinerante, sempre em busca das melhores oportunidades de trabalho. Mesmo entre os escravos as condições eram diferentes: encontravam, na região das minas, maior mobilidade social e maior facilidade para obter a liberdade.
Em função de todas essas situações, o trabalho manual, em geral desvalorizado nas outras partes da colônia, ganhou na região das minas um valor socialmente relevante, do qual mulatos se aproveitaram para obter reconhecimento. Destreza, habilidade e senso estético eram valores relevantes na qualificação dos trabalhadores, conferindo estima, distinção e prestígio e afastando da marginalização.
Uma das marcas do trabalho dos artífices em Minas era seu caráter “liberal”. Os artesãos eram “livres para trabalhar e vender os seus produtos ou mesmo sua força de trabalho”, desembaraçados de instituições, regras e leis. Determinava o processo produtivo as forças do mercado, às quais eles se relacionavam diretamente. O espírito corporativista que regia as atividades mecânicas na Europa fracassou na região das minas. Ali os artesão não se aliavam em cooperativas, nem subdividiam a produção. O indivíduo em geral trabalhava sozinho, do começo ao fim do serviço, secundado apenas pelos seus ajudantes. Não havia a hierarquia rígida que marcava essas atividades na Europa, e a figura do mestre quase inexistia. O sistema de aprendizado era menos rígido e formal que no Velho Mundo, onde se desenvolvia segundo ritos e sistemas. Em suma, em Minas inexistiram as corporações de ofício, uma vez que a proteção que elas conferiam aos artesãos era desnecessária frente a um cenário de demanda perene. Quando se tratava de proteção mútua, os brasileiros preferiam as Irmandades leigas e Confrarias de cunho religioso, que não levavam em conta critérios profissionais como condições de filiação. É necessário ressalvar, ainda, que já na Península Ibérica as corporações de ofício funcionavam sem grande entusiasmo.
Esse modelo de organização do trabalho mecânico em Minas não pode ser tomado como regra para toda a colônia, mas parece certo que a rigidez que marcou a atividade na Europa medieval e moderna não vingou no Brasil. Ainda que não tão liberal quanto na região das minas, onde a demanda aquecida pela rápida urbanização criou condições singulares, as dificuldades de fiscalização, frente à vastidão do território, e o próprio escravismo, que subverteu a organização corporativa das atividades artesanais, impediu que aqui se reproduzissem as condições originais. Tilde Canti reservou uma seção de sua obra sobre o móvel no Brasil para tratar do seu processo de produção. Ela cita inúmeros documentos que fazem referência a carpinteiros, marceneiros e entalhadores, tentando evidenciar a presença deles, sua origem, quando possível, e seu local de atuação. Esse trabalho tenta observar o trabalho dos artífices em escala “nacional”. Os colonizadores e donatários traziam artífices para o Brasil, entre eles carpinteiros, marceneiros e entalhadores. Muitos executavam serviços para igrejas e ordens religiosas, ações bem documentadas nos livros dessas intituições. Serviços para particulares aparecem menos, sugerindo informalidade nos contratos.
Muitos carpinteiros e marceneiros saíam de Portugal portando certificados de suas habilidades, provenientes principalmente da cidade de Porto e do Norte de Portugal. Ao chegarem, solicitavam permissão para executar seus ofícios no Brasil. Esses documentos permitem mapear a saída e a trajetória profissionais.
Na Bahia do século XVIII, como forma de obter a licença para trabalhar, os artífices brasileiros e portugueses deviam se submeter a um exame, que consistia de um questionário sobre o ofício e a execução de uma peça (tamborete, retábulo, caixa e malhete). Se aprovados, era-lhes permitido oficiar em suas “tendas”: os que eram enquadrados como marceneiros podiam executar em obra preta e branca; os definidos como carpinteiros apenas em obra branca (obra preta: móveis; obra branca: carpintaria de construção). Essa divisão não foi respeitada, frente à referida dificuldade de fiscalização. Esse mesmo processo de qualificação era efetuado em Minas Gerais, segundo Caio Boschi, e da mesma forma ignorado. Os juízes responsáveis pela avaliação das peças apresentadas pelos candidatos, chamados “juízes de ofício”, eram eleitos entre os artesão mais experientes.
Havia ainda mestres religiosos e leigos que trabalhavam somente para igrejas e ordens, e não eram registrados. 
O escravismo, como foi dito, também foi um fator que modificou muito a organização do trabalho de artífices no Brasil. Haviam regulamentações para afastar negros e escravos do ofício: não era permitido aos artífices tomar aprendizes negros, somente brancos e mulatos forros; negros não podiam prestar o exame de credenciamento do ofício senão brancos e mulatos forros. No entanto, a falta de fiscalização, aliada ao isolamento das fazendas, fez com que negros escravos e índios fossem aproveitados para o serviço de marcenaria. (CANTI, 1985 – p. 80). O hábito de se empregar escravos como ajudantes acabava por dar-lhes a oportunidade de se aperfeiçoar nos ofícios. Aleijadinho, por exemplo, servia-se da ajuda de dois escravos, Maurício e Agostinho, a quem tratava como meeiros. Muitos desses escravos acabaram conquistando a liberdade por meio de suas proezas técnicas, tornando-se negros forros vivendo de seus ofícios. (BOSCHI, 1988 – p. 34). No borrador de Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco, senhor de engenhos do final do século XVIII da Bahia, encontra-se uma curiosa referência a um escravo artesão. Trata-se de descrição feita por ele de um escravo fugido:
“Marceneiro, entalhador, torneiro e oficial de fazer engenhos. Teve bexigas de que lhe ficaram bastantes sinais; a cor é fixamente preta. Não se lhe falta dente algum; tem alguma coisa de cavalgador, a fala é fina, não é gordo, nem magro; pernas magras e representa 30 para 40 anos sem cabelos brancos. Toca viola a cujo som recita alguns tonilhos castelhanos. É inclinado a Baco, mas não tanto quanto a Vênus de que foi sempre inseparável. Sabe ler e escrever, mas já com óculos, e traz a sua vida por ele mesmo.” (PRIORE, 1997 – p.292)

No Cartório da cidade de Alcântara, nos fragmentos de um livro de transcrição do penhor de escravos, encontra-se breve referência a escravos artífices. Em 3 de setembro de 1867 a Fazenda Pública Provincial do Maranhão tornou-se credora de Antônio Florêncio Alves Serrão. Como garantia o devedor ofereceu, além de “huma situação com um quarto de terra em quadro, com utensílios”, mais “cinco escravos”.  Segue o documento enumerando e descrevendo os escravos penhorados:
“1 - Raimundo preto solteiro, oficial de carapina de 25 annos – 2 José preto solteiro e sem offício de 12 annos – 3 Evaristo preto casado official de ferreiro de 30 annos, 4 – Isaías, digo Elias preto solteiro roceiro de 30 annos; 5 – Gertrudes preta solteira de 30 annos.”

O IPHAN e o Museu da Inconfidência publicaram levantamentos sobre o tema: “Carpinteiros e Marceneiros em Minas Gerais” (Anuário do Museu da Independência, Ouro Preto, 1954), “Documentos sobre artífices e oficiais na região de Ouro Preto e Mariana” (mesma publicação e ano) e “Oficiais mecânicos em Vila Rica”, trabalho de Salomão Vasconcelos, publicado na revista do Iphan nº 4. Até onde nossas pesquisas nos levaram, não detectamos trabalhos semelhantes em relação ao Maranhão.


Bibliografia
BOSCHI, Caio C. O Barroco Mineiro: Artes e Trabalho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
CANTI, Tilde. O móvel no Brasil: Origens, evolução e características. Rio de Janeiro: Cândido Guinle de Paula Machado, 1985.
PRIORE, Mary Del. Ritos da Vida Cotidiana. In: SOUZA, Laura de Melo e (Org.) História da Vida Privada no Brasil, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Imagem:
Pesquisa e texto: Daniel Rincon Caires

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